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Bebel


Eleonora Duvivier
Eleonora Duvivier

Bebel foi minha vizinha durante os anos de nossa adolescência, quando repartimos os altos e baixos dessa fase exótica da vida. Já dizia Proust que assim como na adolescência somos ridículos, também somos totalmente sinceros.

 

Bebel e eu tínhamos catorze anos quando, não me lembro em que circunstâncias, nos falamos na pequena rua em que morávamos, e daquele primeiro contacto a amizade fluiu naturalmente. Compartilhamos os primeiros porres, gamações, sentimento de rejeição, críticas, e o melhor, muito humor e tiradas inteligentes, justiça seja feita. Nos encontrávamos uma na outra, embora tenhamos temperamentos opostos. Bebel tem um comportamento britânico, a começar pelo seu senso de humor mordaz, que se expressa em comentários curtos, certeiros e libertadores. Ela sempre foi estável, discreta, e capaz de ser positivamente planejada. Fez uma carreira brilhante em economia e se tornou independente cedo. Eu, por outro lado, sempre fui impulsiva e parecia agir `as cegas, sem qualquer finalidade prática. Estudei mais de seis anos de filosofia, tendo que aturar a constante crítica de meu pai, o qual usava a segunda pessoa do singular para nos admoestar: “Se conseguires emprego de professora, que é o único para quem estuda filosofia, vais ganhar menos do que uma cozinheira!”.

 

Afinal, nunca arranjei emprego nem de professora e nem de cozinheira, mas o exercício mental requerido pela filosofia salvou a minha relativa saúde psicológica.

 

Voltando a Bebel, lembro-me do meu primeiro porre, quando eu e ela fomos com um grupo tomar cerveja no que então se chamava “Castelinho”. Da cerveja, eu passei pro uísque a largos goles. Tive que sair carregada por José Antônio, também meu amigo e irmão de Bebel, que era mais velho do que nós e enchia o seu fusca de amigos. Um dia, levou doze jovens pro Municipal, nós duas incluídas. Nesse primeiro porre, nem sei quantos éramos, mas tive que dormir no quarto de Bebel. Do jeito que eu estava, nem sei quem avisou minha família. Bati o dedão do pé no pé da cama antes de me deitar, e nesse confronto entre a carne e a madeira a primeira saiu ensanguentada e a segunda intacta. Alcoolizada até a raiz dos cabelos, não senti nada quando aconteceu, e só no dia seguinte, percebi que tinha até rachado a unha em mais de dois pedaços.

 

Eu e Bebel mantivemos contacto depois de termos saído daquela pequena rua, até que as atividades diferentes e a geografia nos separaram.  Acabei por me casar com um americano e vir morar nos Estados Unidos, onde estou há mais de trinta anos. Reencontrei Bebel nas vezes recentes em que fui ao Rio. Na primeira, foi num jantar em sua casa. Sua filha estava presente, e a semelhança entre as duas me fez por vezes me questionar qual delas era mais “Bebel” que a outra.

 

 Antes de nos sentarmos à mesa, minha amiga anunciou que ainda tinha o retrato a óleo que fiz dela na época em que éramos vizinhas. Disse que iria buscá-lo para me mostrar. Eu, que naquela época pintava, nem me lembrava daquele retrato e morri de vergonha, certa de que o acharia horrível. Mas quando me deparei com ele, fiquei consciente de duas coisas. A primeira foi ter capturado o olhar de corça assustada que sempre vi em Bebel e agora também na sua filha. E a segunda foi perceber que eu gostava e gosto muito mais dessa amiga do que me dava conta. A visão do retrato foi o passado revelado e não só revivido.

 

Quando embarquei de volta pra cá, já sentada no avião, Bebel me mandou uma mensagem no telefone e trocamos ideias em torno de uma foto que lhe enviei do dia crítico e assustador que passei no Rio. Na foto, o médico que foi me ver em casa estava com uma expressão preocupada, e eu, bastante pálida e jogada num sofá, refletia a patética mistura de autoabandono e dor.

 

 A imagem de Bebel me dizendo o que disse na sua mensagem me apareceu super nítida, com o sorriso rápido, porém generoso que ela tem. Eu estava super “alta” de marijuana medicinal, que aqui é legalizada (Graças a Deus! O efeito da divina planta permite o esquecimento da existência de Trump).

 

Não quero ser repetitiva ao dizer que vivi um momento proustiano, quando a totalidade de um passado, refletida na imagem de Bebel, ressurgiu no presente.

 

Comecei a refletir sobre a amizade enquanto pacto com alguém, o amigo/a, o qual tem que ser “aquela pessoa” pra compartilhar tantas ocasiões preciosas que vivemos em comum. Quando se chega à terceira idade, cada amigo/a vira um “banco” da nossa vida, armazenando momentos do passado e a revelação desses momentos no presente. Cada amiga carrega essa imensa riqueza da outra: a vida revivida e liberta das correntes do tempo.

 

Assim sendo, vou cometer o “sacrilégio” de dizer que não concordo com Proust ao só ver na amizade a impossibilidade de nos aprofundar em nós mesmos, aprofundamento que para ele só acontece na solidão. Sacrilégio ao quadrado, ainda digo que sou mais proustiana do que ele ao ver em Bebel e na troca que tenho com ela, a minha vida que passou ressurgindo renovada. Pois somente num retorno se dá o verdadeiro nascimento.

 

Assim como, de acordo com o grande escritor, somente os paraísos perdidos são os verdadeiros paraísos.

 


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