Perambulando Com Anjos
- Sonali Maria

- há 4 dias
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(depoimento etnográfico de uma antropóloga sobre um dia histórico)
“A expressão ‘observação participante’ pode dar origem a interpretações apressadas. Não basta a simpatia (sentimento fácil) pelo objeto de pesquisa, é preciso que nasça uma compreensão sedimentada no trabalho comum, na convivência, nas condições de vida muito semelhantes(...)
Segundo Jacques Lowe é preciso que se forme uma comunidade de destino para que se alcance a condição plena de uma condição humana. Comunidade de destino já exclui, pela sua própria enunciação, as visitas ocasionais ou estágios temporários no lócus da pesquisa. Significa sofrer de maneira irreversível, sem possibilidade de retorno à antiga condição, o destino dos sujeitos observados.
(...)
Mnemosyne, a recordadora, era divindade do panteão grego. Qual o poder de Mynemosyne...Irmã de Cronos e de Okeanós, do tempo e do oceano, mãe das musas cujo coro conduz, ela preside à função poética que exige intervenção sobrenatural. É uma forma de possessão e delírio divinos, o entusiasmo*. O intérprete de Mnemosyne é possuída pelas musas assim como o profeta o é por Apolo. (...)”
*A etimologia da palavra nos ensina que, para os gregos, entusiasmo significa o estado de quem tem um deus dentro de si. [nota da autora, Ecléa Bosi]
(In Memória e Sociedade, Lembrança de Velhos, no capítulo II: Tempo de Lembrar. de Ecléa Bosi. T A Queiroz Editor. Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, !987.)
Tive que pegar o metrô ontem [28-10-25] na zona sul do Rio entre 15:15, 15:30h. Ao redor da estação, na rua próxima, nada indicava o Inferno que fervia na chamada Cidade Maravilhosa. Ao chegar na gare da estação deparei-me com uma multidão e não sabia do que se tratava.
Perguntei a uma mulher que também esperavam o metrô por que estava tão cheio assim. Ela respondeu-me com resignação: “a polícia invadiu morros da zona norte pra buscar o Chefe do Comendo Vermelho e houve reação, tiroteios, o tráfico fez descer o pessoal dos ônibus e fechou as ruas. Tá tendo o maior tiroteio na zona norte e ninguém sabe como vai ficar pela cidade”. Pra zona norte que eu ia. Perguntei-lhe: “e como você soube?” “tá passando na televisão. No meu trabalho todo mundo foi dispensado. O uber está cobrando um dinheirão ou não estão parando”. Perguntei-lhe para onde ela ia respondeu-me que pra Tijuca, “pra lá também vou, posso ir com você?”. Assentiu com um sorriso.
Chegou um trem vindo da Barra, lotado, e deixamos que quem estava na frente embarcasse os que conseguissem. Esperamos o trem seguinte. Alguns guardas do metrô desfilavam pela gare, como que para dizer que havia segurança. Chegou o próximo trem e, determinadas, embarcamos, ela também com uma amiga de trabalho e o filho desta que viera buscar a mãe vindo da Tijuca. O vagão estava muito lotado, mas entendemos que a situação não mudaria e nos encaixamos no trem lotado os três. A mulher com o filho veio ao meu lado e disse-lhe que buscassem segurar em algum corrimão por segurança. Silêncio. Havia momentos em que o trem fechado parava fora de estação, sem abrir portas, respondendo a algum comando. Veio parando nas estações seguintes e enchendo cada vez mais. Todos suavam muito. A mulher com o filho que me acompanhava reclamava de que o ar condicionado devia ter temperatura aumentada. Silêncio. O vagão ia enchendo ainda mais a cada estação até que ao chegar a alguma os jovens diziam alto para quem tentava entrar:”não dá mais! Está muito cheio! Não entrem!Não entrem!” E não entravam. Silêncio. Dei-me conta de que estava diante de alguma espécie de uma tragédia social. Havia necessidade de calma.
Em silêncio, todos pareciam pensar assim. Observava o tempo todo um jovem homem, mais baixo que eu, que já estava no vagão desde que entrei e vinha segurando o corrimão, a mochila em seu peito,muito sério, sem dizer palavra, olhando para algum ponto no infinito, circunspecto e sério. Perguntei-lhe: “onde você vai descer?” “na Central”. Respondeu suscintamente e voltou a olhar seu ponto ao infinito.
A cada estação os jovens pareciam impedir que mais gente entrasse e eu percebia que não se via guardas nas gares, se lá estavam, eram raros. Perguntei a mulher em que estação desceria, ela me respondeu que uma antes da que eu ia descer. Senti e compreendi a seriedade do rapaz ante o que representava ter que descer e encarar a multidão, o conflito na zona norte (percurso do trem), em como estaria cheio o trem da Central do Brasil. E pensei na realidade de tantos trabalhadores que enfrentam esse trajeto cotidianamente na seriedade daquele jovem homem. Havia uma calma no suor de todos comprimidos naquele vagão. E pensando no cotidiano dos trabalhadores, bem o sei dele, disse eu à mulher que me acompanhava: “sabe, está todo mundo aqui nesse vagão na maior paz porque sabemos que vida de trabalhadores não é diferente, sabemos nossa realidade, que bom que aqui está todo mundo consciente, que só tem trabalhador”.
Mas ao chegar em Botafogo não houve jeito, ninguém pôde impedir que mais um grande grupo ingressasse no vagão, notei duas moças muito jovens lindas negras que vieram ficar perto de mim. Iam descer na Central. Uma delas reclamava do calor, do cheiro do suor de todos, e disse “ainda bem que não tem homem arás de mim!”, “bem sei como é”, disse-lhe eu e a outra, também muito jovem, de óculos, cílios postiços, e um coque de cabelos em cachos também completou o coro “e nem atrás de mim!”. Da minha esquerda, mais ao fundo, mais uma outra mulher também se manifestou “e nem atrá de mim!” Todas nós que já viveram a experiência de pegar um vagão de trem cheio com um homem atrás sabemos o que significa.
Voltou-se o silêncio, Comecei a me preocupar em como estaria a Grande Tijuca, especialmente como estaria a estação em que desceria, área de forte concentração populacional e de morros em que pipocam conflitos. Se haveria ônibus ou não para vir para casa. Reparei que alguns estavam mais serenos e sabedores da situação pela comunicação de parentes e vizinhos pelo celular e, embora eu não estivesse muito afeita a usar o meu, busquei ver se alguém de meu conhecimento havia me mandado alguma mensagem sobre como estava o Rio. Vi então que meu filho havia me repassado mensagens de amigos dizendo que “estava pegando” em nosso bairro , que o tráfico havia paralisado o trânsito fechando sua rua principal com ônibus e que fizeram descer passageiros. Escrevi-lhe então dizendo que estava no metrô lotado depois da estação Botafogo. Em seu jeito lacônico respondeu-me ”putz, esteja atenta”.
E ao ir chegando à Central do Brasil, a mulher que me acompanhava com seu filho me avisou: “se segura e segura sua bolsa que vai ter tumulto”. Pedi então que as duas jovens que tinham entrado em Botafogo passassem para minha frente e fossem ficar mais perto das portas onde iam descer. Ao parar na Central do Brasil uma onda de gente saiu com força do vagão, de lá eu via a multidão que enchia a estação da Central. O que os aguardava, eu me perguntava.
O vagão esvaziou, deu até para que nos sentássemos. Disse à mulher que estava comigo que estava preocupada em descer sozinha no miolo da Tijuca, e sem saber como estava por lá, se haveria ônibus, se haveria policiamento, algum tumulto. Ela me sugeriu que entrasse “em uma daquelas farmácias” para esperar o ônibus. Desceram, ela, seu filho e a amiga de trabalho, na estação que me dissera. Eu desceria na seguinte. Escrevi a meu filho perguntando se não poderia ir me buscar de carro, a que não leu nem respondeu a essa mensagem parece-me que até agora (o que é o seu normal há alguns anos).
Perguntei a uma senhora que estava à minha frente se não ia descer, ela disse que sim, que fossemos juntas. Ao descer do vagão ela segurou minha mão e me disse “tenho 75 anos. Te deixo no teu ponto de ônibus”. Nos demos as mãos e saímos da estação. Na avenida principal não havia nenhum ônibus, quase nenhum táxi, alguns carros circulando, sem policiamento, muitas pessoas caminhando devagar e sérias, perambulando, tomando caminhos. A mulher que segurava minha mão me perguntou:”onde fica seu ponto de ônibus?” Apontei-lhe a fila imensa que lá estava e deduzi que não tinham ônibus circulando para meu bairro. “vem comigo” ela me disse, “vou pegar o ônibus para Vila Isabel”. Eu sei que lá também está uma área conflagrada, que possivelmente também não haveria ônibus. Ela quis ir assim mesmo. Decidi ficar por onde estava. Observava que algumas poucas lojas ainda estavam abertas. Ela disse-me firme: “fica com Deus, que eu também vou com Ele”. Olhei ao redor, e ao perceber a paz da resignação dos muitos que por lá também perambulavam, decidi ir buscar abrigo num ponto de táxi vazio que por lá está, e esperar por outros anjos com que dividisse um raro e destemido táxi que aparecesse. Muitos, muitos, estavam retornando silenciosamente para seus bairros a pé.
Ao chegar à casa vazia, ligar a TV e assisitr ao jornal televisivo, vi naquela hora, 18h, a dimensão da tragédia social, os relatos cheios de incongruências, a frieza, e falta de dados de autoridades locais e jornalistas.
Hoje (dia 29 de outubro de 2025), às 7h da manhã, um helicóptero estava parado no Céu, em frente de minha janela, como faziam há anos. Possivelmente na espreita de uma favela na mata daqui de perto.
(Para minha professora, a antropóloga Elina Pessanha, que me apresentou os trabalhos de Ecléa Bosi, através da qual tomei conhecimento e li escritos da filósofa Simone Weil)
(29 de outubro, 2025)
Sonali Souza
Graduada e Licenciada em Ciências Sociais (UFRJ)
Especialista em Docência do Ensino Superior (UCAM)
Mestre em Antropologia Social com ênfase em Antropologia Urbana
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