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A Sofia, menina ainda, chegava a sonhar com aquele hábito bonito, preto como a asa da graúna, o véu e até o cornete, aquele chapeuzinho que freiras de algumas ordens usam.


Não sabia o que se usava por baixo, mas certamente alguma coisa igualmente respeitosa pra compor o figurino de uma religiosa enclausurada, capaz de dedicar todos os minutos de sua vida à adoração ao divino e à caridade, sem desvios, sem mundanices.


Estava decidida. Antes de completar a maioridade pediria aos pais para ser encaminhada a algum convento, onde se confirmaria e viveria a plenitude das coisas em que acreditava.


Sabia as missas de cor, ajudava o vigário da paróquia, era a melhor aluna do catecismo.

Havia um longo caminho a percorrer, mas o seu dia chegaria. Tinha certeza disso.

No decorrer da infância e adolescência, Sofia era um exemplo de menina.


Tivesse morrido, seria canonizada “sem intermediários”, diziam as amigas. Nunca teve problemas de nenhuma natureza com ninguém. Era a mais querida da escola, ainda que eventualmente fosse mal falada por grupos de meninos que não recebiam dela o tipo de atenção que gostariam, ou por uma ou outra menina que desdenhava da atenção dedicada a ela por meninos e meninas.


Atenção, aliás, sempre desinteressadamente correspondida. O que interessava à pequena Sofia era o bem-estar de todos e o bom desempenho escolar, muitas vezes turbinado pelas aulas informais que organizava e ministrava com a intenção de ajudar a todos.


Sofia, se dizia em seu entorno, não corta nem papel higiênico fora do picote. Comportamento exemplar, aproveitamento máximo, simpatia à prova de qualquer suspeita. Querida até por quem não gostava de ninguém.


Como previsto, claro, tudo deu certo. Sofia merecia. Não houve menino capaz de conquistar seu coração, desde sempre dedicado ao que ela considerava um “bem maior”. Não houve projeto que a desviasse de seu santo caminho.


Ela merecia realizar os sonhos que tinha. Foi gente boa demais a vida toda. O mundo, no entanto, sempre oferece surpresas. Se ela conseguiu passar incólume pelos pecados que poderia cometer, ficha tão limpa que aposentaria os confessionários e deixaria os padres sem recomendar penitência, nem uma avemariazinha pra redimir nada, foi logo nas primeiras noites de clausura que a coisa começou a mudar.


No convento, as jovens noviças se reuniam em atividades de fé e de lazer, inclusive com a transmissão do noticiário.


Pobre Sofia.


Sabemos todos o quanto é difícil manter a san(t)idade diante das notícias. Injustiças, crueldade, horror. Nós e a Sofia sabemos que tudo isso sempre existiu. Ela, muito mais que nós, resistiu bravamente à profusão de maus pensamentos que todas essas monstruosidades nos inspiram.


Mas a alma de Sofia é mais pura que a nossa.


Nem por um segundo ela cedeu e desejou ou festejou a morte dos responsáveis pelas guerras, pela fome e pelas malignidades sem fim que infestam os noticiários e redes. Mas, fortalecida pela intimidade que acreditava ter desenvolvido com seus santos de devoção e até com a Santíssima Trindade, intimidade turbinada em incontáveis missas e aulas de catecismo, em retiros de carnaval, cursilhos, um dia a Sofia, no silêncio do seu claustro sem janelas, na solidão de sua cela, perguntou ao Senhor:


— Me desculpe, Todo-Poderoso, Senhor dos meus dias e das minhas vontades e desejos, mas precisava mandar, na minha geração, Trump, Netanyahu, Putin? Tudo de uma vez? E ainda esses brasileiros? O PL inteiro? Padre Kelmon? Malafaia? Assim fica difícil demais...

Chorou, sofreu e se penitenciou muito, antes mesmo de confessar ao padre que atendia às noviças em suas angústias.


Mas não perdeu o hábito de assistir ao noticiário.

E seguia perguntando a Deus o sentido de tanta gente ruim ao mesmo tempo.

— Milei, Senhor? Pra quê?

Deixou, aos poucos, de pedir tantos perdões, mas não perdeu a fé e se manteve firme no propósito de sua vida.


Até  que, nas últimas semanas, adotou uma forma alternativa. Pede perdão antes, na iminência de cometer um pecadinho. Algo como um habeas corpus preventivo.


Foi assim que se permitiu exibir um sorrisinho de canto de boca quando um outro reacionário, direitista e supremacista, acertou o Charlie Kirk exatamente quando ele falava para um monte de jovens e fazia a defesa do livre uso de armas de fogo.


Teve a impressão de ter recebido um aceno do céu.

Cada um acredita de um jeito, não é?


Por mim, a Sofia segue santa.

 

Rio de Janeiro, setembro de 2025.


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1 comentário


Denise Silva
Denise Silva
16 de out.

Santa Sofia! hahahaha Muito bom, Leo! Adorei!

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