Dois brownies e a conta.
- Jorgito Sapia

- 10 de jun.
- 8 min de leitura

Um dia quente do verão que antecedeu à pandemia, recebo uma chamada do meu amigo Carlinhos, me convidando para fazer parte do júri que escolheria o samba do bloco carnavalesco Discípulos de Oswaldo. Honrado com o convite anotei na agenda dia e horário do evento que aconteceria nos jardins da Fiocruz, sexta-feira a partir das 18 h. Noves fora, sabia que iria enfrentar o calorão da Avenida Brasil. Sabia também que enquanto boa parte da população estaria gritando sextou, sextou, eu estaria no engarrafamento da principal via de entrada e saída da cidade. Mas, como diz o deitado, vamos em frente que em casa de ferreiro, quem tem um olho é rei.
Conheço Carlinhos faz tempo. Quase nos esbarramos, em 1977, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) onde ele fazia história e eu era calouro de Ciências Sociais. Em 1978 migrei para a UFF. Não foi dessa vez.
Quase nos esbarramos na campanha pela anistia e nas multitudinárias passeatas pelas eleições diretas, mas também não foi aí, nem o encontro nem as diretas. Foi na Lapa, fim do século passado. De lá pra cá, esbarramos com gosto, tanto é assim que, além de inúmeras parcerias, Carlinhos foi celebrante do meu casamento junto com Nelsinho Rodrigues e a querida Denise, fundadora do bloco Vem Ni Mim Que Sou Facinha e, também, quem diria, minha chefa durante um tempo bom.
Numa das minhas separações liguei pra ele buscando pouso. E o que que ele me respondeu?
- Venha!
E lá fui eu para a pequena Albânia, ou República das Laranjeiras.
Cheguei no aparelho, peguei a chaves com o porteiro, conforme o combinado. Quando estava colocando a mala na sala tentando adivinhar como iria me arranjar, escutei o barulho da porta de um dos quartos abrindo. Para minha surpresa, vejo aparecer o cabelo e a barba branca do querido, e o mais que saudoso, Marcelo Sá Correa.
- Salve! Salve! E olhando a mala perguntou: veio pra ficar?
- Pois é, um tempo, até clarear.
- Que nem eu, disse Marcelo e se dirigindo à cozinha, para pegar uma cerveja. Que nem eu, continuou. Cheguei tem dois anos.
- Achei a recepção promissora.
Marcelo foi professor de matemática, com curriculum acadêmico invejável e com curriculum social melhor ainda. Sair com ele pelas ruas da cidade, pelas rodas de samba, pelos botequins mais vagabundos sempre foi garantia de bons e inusitados encontros com quem já tinha tido o privilégio de ser sua ou seu aluno. Professor reverenciado, excelente contador de histórias e celebérrimo botafoguense. Junto com ele, e o dono da casa, vivi uma temporada ótima. Bons papos, excelentes histórias, muitas gargalhadas e ótimos almoços nos finais de semana.
Mas voltando ao convite. Na noite anterior à escolha do samba na Fiocruz, recebo ligação de minha enteada perguntando se poderia, na sexta-feira à tarde, tomar conta da filha, naquele tempo, com 5 meses de vida.
- Com maior prazer, seus problemas acabaram, respondi. Mas querida, o dever me chama e vou precisar sair às 17 h.
-Ótimo, as 16 estou de volta, respondeu.
Ficamos combinados assim. Naquele tempo, minha neta por afinidade, adorava meu colo. Hoje, para conseguir um abraço, assim de cara, tenho que usar mil artimanhas e algum suborno a base de picolés, assim, no plural.
Cheguei ao meio-dia, brincamos um pouco e, depois do almoço, adormeceu. Aproveitei pra beber água e inspecionar a geladeira. Descobri, meio malocados, dois brownies. Achei a sobremesa ótima.
Desejo saciado, liguei a TV e comecei assistir um filme. Meio cochilando, mas com um olho na neta que dormia placidamente no sofá da sala, fui surpreendido com a chegada da Deia, avó da criança.
- Opa, boa tarde! Tudo tranquilo? perguntou.
-Tudo, respondi. Que bom que você chegou. Vou aproveitar para tirar um cochilo antes de partir pro samba.
Acordei um tempo depois me sentindo meio estranho. Bebi água, falei que ia pra casa tomar um banho e sair. Nesse meio tempo, a mãe da criança voltou e aproveitei a companhia da parceira para ir até minha casa, ali pertinho.
No caminho falei pra ela, algumas vezes, que estava me sentindo estranho, meio agitado, com taquicardia, palpitações, mas, ao mesmo tempo, muito calmo.
- Deve ser o calor. Toma um banho que passa. Me falou
Banho tomado, celular na mão para chamar um Uber, encontrar com Junior, parceiro que também estava com incumbência de fazer parte do júri. Antes de subir no carro consegui dizer,
- Amore, olha que estranho... tenho a nítida sensação de ter fumado um baseado.
- Deu um sorriso maroto e comentou, aproveita a viagem então.
No carro, como a taquicardia continuasse, tentei amenizar pensando fossem gases, mas a paranoia foi tomando conta do meu ser. E eu sem falar nada pro parceiro pois, sabe aquele misto de não querer preocupar e não querer ser sacaneado, pois é, assim estava eu, levando o incomodo sozinho.
Conforme previsto, maior engarrafamento. Nas proximidades da Avenida Brasil o Uber passou pelo INTO e uma ideia salvadora me veio à mina cabeça. Pensei, porra, maravilha, vou descer é aqui mesmo.
Claro que sabia que o INTO era o Instituto de Traumatologia e Ortopedia, e dado que o que eu sentia eram palpitações, taquicardia e sudorese, quadro que estava mais próximo do infarto, dificilmente seria atendido. Deitadão no banco de trás do Uber passei mentalmente em revista as especializações que o nosocômio atendia a procura de algum distúrbio que pudesse adiantar meu atendimento. Sabia que o INTO tratava patologias especificas: Quadril, Joelho, Pé, Ombro? Nada disso eu tinha. Mão, Microcirurgia, Coluna, Dismetria (Fixador Externo), Crânio-Maxilofacial, Oncologia Ortopédica, infantil, nada, nada. Caraca, pensei, tô lascado! Mas, no mesmo instante lembrei do Trauma e, principalmente, do Trauma do Idoso. Quase que verbalizei, taí seu cabra da peste, era a moléstia que precisava: Trauma do Idoso! Trauma do idoso! Vamos nessa, vamos nessa, repetia pra mim mesmo, porém, enquanto lutava com minha consciência e minha vergonha o engarrafamento desengarrafou e, milagre, a Av. Brasil se apresentou em todo seu esplendor absolutamente livre. Enquanto estava me recompondo o carro passou pelo cemitério do Caju. Foi o tempo de soltar uma gargalhada ao lembrar de um outro amigo que tinha por hábito se esconder no carro nas proximidades de qualquer cemitério. Quando indagado sobre seu comportamento pouco usual, sempre respondia:
- Meu camarada, quem não é visto não é lembrado.
Meio aliviado, meio preocupado, ia comentar o causo com Jr, quando escuto ele falar:
-Positivo e operante.
- Que foi? Perguntei.
- Mandei um alô pro Carlinhos com as coordenadas e pedi pra esperar na entrada meu brother, morou?
-Morou? Pô tu tá falando que nem o Rei.
-Sacaneia não.
O Rei era um amigo comum que teve, na década de 1970, uma bad trip com ácido e, desde então, ficou travado nas gírias dessa época. É broto, supimpa, serelepe, careta, bulhufas, falou e disse, pra cá, bicho grilo pra lá, e por aí vai, morou mermão?
Parece que eu estava com um sorriso no rosto provocado pelas lembranças do Rei quando vi o Carlinhos que nos aguardava no pátio. Desci do carro e fui logo perguntando:
-Carlinhos, meu caro, tem algum médico neste evento? Estou meio esquisito!
- Médico não sei, mas tem cerveja. Vamos chegar.
Jr., que até então não sabia de nada foi se adiantando e voltou, segundos depois, com uma cerveja e três copos. As palpitações cederam um pouco, e o clima de confraternização e festa contribuíram para ir colocando os temores de lado.
Já na quadra, falei pros dois que estava ainda esquisito, mas que a cerveja estava ótima.
- Esquisito como? quis saber o Jr.
-Sei lá parceiro, estava, aliás, estou, com algumas palpitações e a nítida sensação de ter fumado um baseado - só lembrava do tempo em que morei na Colômbia e da cannabis por lá produzida. Tinha a das plantações do sul - Popayan e Cali – e a da Serra Nevada de Santa Marta, conhecida popularmente como “la dorada”. Potência semelhante só a “da lata”, que ficou dando sopa no litoral brasileiro no verão de 88, não me refiro à sardinha, embora lembre que a imagem da Adele Fátima era um colírio para os olhos. E por falar em sopa também esclareço que a referência à lata não tem qualquer relação com a serigrafia Andy Warhol. Enfim, sei que, entre uma palpitação e outra bateu mesmo foi uma saudade. Mas continuei meu diálogo com Jr. só para informar, com um sorriso no rosto que, naquele preciso momento, estava mais calmo:
- Deve ter sido a cerveja, lembro de ter concluído.
Posicionados, depois de inúmeras apresentações e cumprimentos, começou o esquenta da bateria e, a seguir, o primeiro samba estava sendo apresentado. Tinham convencionado duas sem e duas com. Isto é, duas passadas sem bateria e duas com bateria. Concordei e estava achando tudo maravilhoso, tanto foi assim que o primeiro samba concorrente passou, pra mim, de maneira irretocável, assim como o segundo, o terceiro, o quarto o quinto e o sexto, e eu lá, sorrindo, acenando e me sentindo um misto de Carlos Imperial e Jorge Perlingeiro: 10! Nota 10! Depois do terceiro samba notei que o júri se entreolhava, cochichava e me olhavam com ar surpreso. Jr, que tinha passado comigo não poucas e boas, me cutucava e perguntava qual o motivo da nota?
- Jota Erre, bonita melodia, letra boa, dentro do enredo. Note você que a bateria também gostou, capricharam bastante.
- Pelo visto escutamos dois sambas diferentes...
- Não será a primeira vez, respondi, rindo...Você sempre tinha razão.
Quando dei por mim já estávamos na apuração e a escolha foi inquestionável.
Grande festa. Grande comemoração. Todo mundo cantando, prometia, como de fato foi, um grande desfile.
Dever cumprido, fomos pra outro evento na Lapa, - “o ponto maior do mapa do Distrito Federal” -, desta vez na qualidade de espectadores. Tudo tranquilo, deixei o evento e fui pra casa dormir, pois lembrei que no dia seguinte tinha que comparecer a um seminário sobre Carnaval e Saúde mental.
Dormi bem, mas, acordei ainda meio estranho. A taquicardia tinha passado, mas continuava meio aéreo. Encarei o seminário e, no final, minha companheira, que era uma das palestrantes, me informa que a filha, ou seja, minha enteada, a mãe da criança, nos chamava para almoçar num samba que iria rolar na Praça do Lido, ali em Copacabana. Lembrei que se tratava do grandioso desfile parado do bloco Põe na Quentinha, bloco gastro-carnavalesco que o querido, sorridente, camarada e saudoso Berg Silva tocava junto a sua companheira, carnavalesca, pernalta, militante do bem e da cultura
Achei o convite ótimo e pra lá fomos nós. Minha enteada, o marido, e a filha de quem eu tomara conta no dia anterior, tinham reservado uma mesa ótima. Chegamos, cumprimentamos, dois beijos nas bochechas, abraços, festejamos a fantasia da criança e, enquanto Deia se sentava nas cadeiras de plástico, vi um trailer que oferecia uns sanduíches de linguiça que lembravam aquele do alemão. Voltei com um sanduíche em cada mão, entreguei um pra companheira, sentei-me e, bem na hora que estava pronto pra dar a primeira mordida, o pai da criança me pergunta,
-Meu sogro, você por acaso comeu ontem dois brownies que estavam na geladeira.
Surpreso com a pergunta, congelei a mordida e falei no ouvido da Deia:
- Esse teu genro me pede pra tomar conta da filha e tem a cara de pau de me cobrar um docinho que até para abrir foi uma luta, vou dar porrada no cara.
Me contive e respondi,
-Comi sim! Algum problema?
-Sabe o que é meu sogro, eu como meio - reforçou o meio - brownie por vez e fico muito satisfeito.
Alcancei a falar,
-Tu és sovina, pão duro ou mesquinho mesmo?
E ele, no lugar de ficar puto começou a rir e continuou.
- Não, meu caro sogro, nem uma coisa nem a outra, sabe o que foi? Tá sentado? - Não está vendo? Respondi.
Ai, ele soltou a explicação:
É que o brownie que você comeu e, ao que tudo indica, gostou, tinha um recheio especial, aliás, os dois brownies (e reforçou o dois) que você comeu e que estavam super embrulhados para evitar que qualquer aventureiro lançasse mão, eram de cannabis, a popular maconha. Tu deves ter ficado muito louco!
No exato momento em que caiu a ficha e revivi, num segundo, a estranha experiencia das últimas 24 horas, veio do palco a melodia e os versos da música do poeta Luiz Carlos da Vila:
Oitava Cor
Mais, é muito mais
Que o calor de uma fogueira
Os vendavais que abalam as cordilheiras...
Ai tudo ficou claro, nesse instante tive certeza de ter visto, de fato, “do arco-íris a oitava cor...”, pra que mais?... Garçom, a conta por favor.
Roda de Samba pra Churrasco, na Spotify / Cedro Rosa.
Disponível para download e trilha sonoras.


















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