Linda Waltz
- Leo Viana

- há 20 horas
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Leo Viana
Sabia exatamente por onde deveria começar a se desmontar. Fazia a mesma coisa havia já muito tempo — o ritual tinha suas marcas e rotinas. Mas, de repente, sentiu vontade de reiniciar o processo, dar vida nova ao que se tornara corriqueiro. Já perdera a conta das vezes em que começara tirando os cílios postiços e passando o demaquilante no rosto.
Podia começar tirando a roupa, que era mais simples, para depois sentar com calma diante do espelho e realizar aquelas operações mais detalhadas, que requeriam mais atenção. Mas não. Era transgressor(a) desde sempre.
Levava aos trancos pessoais a vida de advogado da elite conservadora durante o dia, desbloqueando ativos financeiros e administrando grandes fortunas em casos paradoxalmente ruidosos e secretos, envolvendo cifras e nomes fora do alcance das pessoas comuns. À noite, sem que a elite desconfiasse e sem que os públicos se misturassem, era Linda Waltz, dragqueen que vinha construindo uma carreira relativamente bem-sucedida entre o público que se divertia na madrugada do bairro periférico.
Através do escritório, mas sem se identificar, ajudava o público do entorno. Chegava vestida e maquiada para o show, que fazia duas vezes por semana, às sextas e sábados. O carro popular e muito rodado já era conhecido no entorno da pequena casa de shows. Vivia driblando o estranhamento dos clientes ricos do advogado. Nunca aceitava passar os fins de semana fora da cidade e, por vezes, pegava os voos mais caros, em cima da hora, apenas para voltar a tempo de jantar em casa na sexta, como se isso fosse um dogma, indiscutível, absolutamente fora de negociação.
Mantinha a estranha rotina havia tempo demais. Dois carros, duas caras, duas identidades, duas profissões.
Na frente do espelho, desmontando uma personagem para entrar na outra, refletia sobre manter ou não a rotina. Tirou os cílios, as lentes, passou o demaquilante com cuidado. A peruca profissional saiu fácil, como sempre, apesar de resistir muito bem ao sacolejo que o show exigia.
O longo vestido vermelho, comprado numa viagem de trabalho a Paris, era só mais um a ser guardado no guarda-roupa cuidadosamente camuflado numa falsa parede do closet. Tirou o soutien com enchimentos para simular seios — coisa fina, também de origem francesa — e depois se livrou do corpete que lhe conferia as curvas que o corpo de advogado não tinha.
Examinou-se detalhadamente no espelho de corpo inteiro e gostou do que viu. Nenhum sinal de purpurina ou qualquer outro souvenir da atividade secreta.
Tinha agendado, numa excepcionalidade da qual talvez se arrependesse, uma reunião com cliente na tarde de domingo. O volume de recursos envolvido poderia garantir uma aposentadoria precoce e sustentável, inclusive com um padrão de vida superior ao projetado por ele mesmo, além da segurança de continuar ajudando quem mais precisava.
Aparentemente, não havia ilegalidade no processo, apesar da imoralidade que são as grandes quantias de dinheiro apropriadas por pouca gente.
Fez a reunião. O processo foi bem mais simples do que o previsto; efetivamente, não havia ilegalidade. Fez duas viagens rápidas à Europa e, em um mês, recebeu mais dinheiro do que jamais havia recebido na vida.
Pela primeira vez, numa manhã de segunda-feira, iniciou a montagem da personagem que normalmente só surgia às sextas. Com a prática, em cinquenta minutos Linda Waltz se mostrava inteira diante do espelho num vestido azul deslumbrante e decotado, esse adquirido em Nova Iorque, quando precisou discutir a repatriação de ativos com um cliente ligado às grandes empresas de comércio eletrônico.
Numa epopeia de primeiras vezes, Linda desceu pelo elevador social e assumiu, na garagem, o volante do SUV caro, que não conhecia a periferia e era usado somente no trajeto até o escritório.
O porteiro do edifício comercial, no Centro da Cidade, estranhou a motorista no carro do Doutor. A mulher bonita e grande acenou; o porteiro retribuiu, mas não teve tempo de perguntar nada.
Ela irrompeu no escritório com a autoridade de quem conhece o espaço. Abriu portas, digitou senhas, recolheu os papéis da mesa de trabalho. Um dos estagiários se assustou, a recepcionista ligou para a segurança, e um dos sócios, normalmente sisudo e introspectivo, deu um grito agudo — revelando talvez mais do que desejasse.
Linda pegou um celular na gaveta e levantou-se exatamente quando o segurança chegava à sala.
Vindo da periferia, como quase todos os seguranças, ele reconheceu imediatamente a drag. Conservador por princípio — embora frequentasse shows de dragqueens nos fins de semana — tentou aplicar um golpe de artes marciais, mas foi imobilizado pela figura exótica que era Linda.
Foi a única coisa que deu errado. Precisou revelar a identidade secreta e informar a todos sobre a aposentadoria precoce.
Agora faz três – eventualmente quatro - shows por semana.
A notícia da confusão nunca ultrapassou as paredes do escritório. A reputação segue sendo um ativo muito importante.
O segurança foi bem remunerado para guardar o segredo. O orgulho ferido também contribuiu.
E foram todos – até onde se sabe - felizes para sempre.
Rio de Janeiro, novembro de 2025.
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"Cultura, Sociedade e Outras Teses"


















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