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Entre a Cruz e a Espada

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Me apaixonei pelos Estados Unidos quando me tornei estudante de filosofia em Boston. Eu nunca tinha conseguido fazer nada significativo fora de casa, nem mesmo tirar carteira de motorista. Além da minha excessiva introspecção, que meu pai interpretava como autismo, sempre fui desprovida de sentido de orientação e de uma noção de espaço “decente”.


Levei dois anos pra aprender a dirigir. Depois de um mês de aulas em uma autoescola, eles já não deviam me aguentar mais e sugeriram que eu comprasse a carteira. A própria autoescola a vendia. Procurei me certificar que não teria de fazer o exame, e me garantiram que não seria preciso. Comprei a carteira para poder continuar treinando com alguém do meu lado no carro, independentemente da autoescola. Só que tive de passar pelo vexame de fazer o exame, em que comecei por derrubar todas as balizes pra tirar o carro de dentro delas.


Quando o fiscal veio pra perto e abaixou o rosto-que aliás era bastante bonito- pra janela do carro e me disse que eu devia ao menos ter tido UMA aula de direção, respondi, “Eu tive cinquenta!” preferindo assumir a minha falta de jeito do que a pura irresponsabilidade de ter comprado a carteira. 


 Durante o meu processo de aprendizado, papai me dizia pra ir fazer um exame da cabeça, enquanto mamãe, que acreditava nas pessoas, não só insistiu que eu aprenderia, mas, diante das lágrimas e juras de redenção de um delinquente que tinha ficha na polícia, lhe deu crédito e o empregou pra que me treinasse no volante todo santo dia, já de posse da carteira comprada. Depois de uns meses, ele, assim como os instrutores da autoescola já tinham me dito, falou pra eu desistir. Ficava chocado com o fato do carro sempre me parecer muito maior do que era e eu nunca saber onde ele iria caber. Acabei conseguindo independência daquele cara, mas durante as décadas em que dirigi, nunca fui capaz de estacionar o carro paralelamente à calçada.


Em Boston, eu não precisava dirigir, o metrô parava bem na frente da universidade, e eu fiz um curso brilhante. Meus ensaios eram até citados nas aulas. A sensação de conseguir funcionar, e funcionar com excelência, no primeiro mundo, foi de redenção. Além de amar o estudo, eu sentia como se todas as portas estivessem se abrindo pra mim. Até um frasco grande do perfume que eu costumava comprar me foi presenteado pela vendedora do Balcão Dior, numa “department store”, assim, a troco de nada.


Uma vez, a administração da universidade, ao calcular a quantia que eu devia pagar para o semestre seguinte, fez um erro de mil e duzentos dólares a meu favor (e isso, há quase quarenta anos atras). Quando se deram conta, quiseram cobrar aquele dinheiro, mas deixaram passar quando eu lhes disse que já não o tinha mais e a responsabilidade tinha sido deles.


No começo do curso, que eu estava fazendo independentemente do programa oficial de filosofia, pedi ao reitor pra que considerasse as minhas notas e me dispensasse do SAT pra que eu pudesse fazer parte do tal programa. Eu sabia que não iria passar na parte de física daquele exame porque física nunca entrou na minha cabeça.  Dali a uma semana, a carta do reitor chegou, me dando isenção do SAT. Isso me fez pensar que os americanos valorizam mérito acima de regras e até mesmo de dinheiro. “Once upon a time.” Mil coisas meio “mágicas” me aconteceram, afinal.


Quando papai foi a Boston visitar meu irmão, que estudava música em Berklee, e eu que também era estudante em BU, e viu como eu estava animada, sugeriu que eu vendesse tudo o que tinha no Brasil e viesse morar por aqui. “Só que num caso desses, você tem que tomar cuidado pra não ser uma brasileira quando nos Estados Unidos e uma americana quando estiver aqui. Eu, que nem tinha pensado em me mudar pra outra cultura, me assustei com o tamanho daquela previsão. Assim que o curso acabou, voltei pro Brasil. Mas nunca esqueci das palavras proféticas “cuidado pra não ser brasileira nos Estados Unidos e americana aqui.” Não foi atoa que mamãe apelidou papai de Nostradamus. Ele fazia previsões, em geral pessimistas, sem nem saber que estava vendo o futuro.


Quando anos depois, me casei com um americano, mudei-me pra cá muito mais por causa do marido, em quem depositei total confiança, mais do que do seu país. Mas no fundo de mim, ainda estava condicionada a achar que eu só funcionava bem aqui. Até mesmo o fato de ter sido um americano que me deu o seu voto de fé e com quem formei família parecia uma confirmação disso.


Depois de trinta anos e muitas mudanças geográficas nos Estados Unidos, resolvi deixar o marido. A verdade é que, como disse “Nostradamus”, sempre me portei como uma brasileira neste país, alguém de bem com o improviso, enquanto o marido, como um americano super programado e com mania de controle, só fazia dizer com ressentimento que morar comigo era como estar numa montanha russa. Na sua angústia de querer micro gerenciar e prever todos os meus passos, o cara ficava ameaçado com mínimas coisas que na época eu nem notava, e uma total mudança de humor tomava conta dele.


Por exemplo, sair para ir comprar uma determinada planta e, na loja, prestar atenção a outras, era pra ele um sacrilégio. A sua frustração me era incompreensível. Mas quando eu visitava o Brasil, ficava na expectativa de que tudo iria “funcionar” como aqui. Uma vez, li um livro do intelectual muçulmano Edward Said, que tinha estudado em Harvard e sido professor em Columbia por uns trinta anos, dizendo que nunca tinha se acostumado com os Estados Unidos, e que a neve pra ele era como a morte. Isso me fez pensar que certas pessoas são predestinadas a não pertencer, na verdade, a nenhum lugar. Pois Said disse também que não é possível visitarmos o nosso lugar de origem porque ele já não mais será o mesmo. A propósito disso, Proust afirma que o que tomamos por “lugares” são, na verdade, momentos que passaram de nossa vida. O supersensível escritor sempre se decepcionava ao revisitar os locais queridos do seu passado.


Não é fácil não pertencer a lugar nenhum, mas quando lembro que hoje tudo muda tão rápido, fazendo com que todos nós estejamos sempre correndo atrás do tempo e eternamente divididos entre o que já foi e o que está sendo. Vejo que, em maiores ou menores graus, todos viramos nômades no espírito, sem raízes e sem um amanhã mais ou menos certo.


A minha condição entre dois países me parecer como se eu estivesse entre a cruz e a espada é somente uma exacerbação de uma situação cada vez mais universalizada. God help!


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