Mysterium Tremendum et Fascinans
- Eleonora Duvivier

- 25 de out.
- 5 min de leitura

Quando meu sobrinho Gregório tinha dois anos, a família foi festejar o Natal no apartamento que seu pai Edgar tinha em Santa Teresa. Aquele foi o primeiro Natal em que o avô materno de Gregório se fantasiou de Papai Noel e entrou de surpresa, carregando um grande saco de presentes. Lembro-me nitidamente do impacto de sua chegada.
Ainda sem saber da surpresa que o avô havia preparado, Gregório tinha dito a Edgar que queria de Papai Noel um cachorrinho de brinquedo que andasse, latisse, e desse “cambaota” (cambalhota). Edgar não sabia onde encontrar o tal cachorrinho, até que um dia, andando pelo centro da cidade, viu um camelô demonstrando exatamente o que Gregório tinha descrito. Era um cachorrinho de corda que não só latia, andava e pulava, como dava cambalhotas em pleno ar.
Assim, numa determinada hora da noite do dia 24, quando todos estavam presentes, se ouviu batidas discretas na porta.
“Quem será?” perguntaram alguns de nós, mesmo sabendo de quem se tratava.
A porta foi aberta, “Papai Noel” entrou com o saco de presentes e se sentou numa cadeira ao lado da árvore de Natal, fingindo cansaço. As crianças ficaram admiradas, mas muito mais do que admirado, Gregório se colocou no chão frontalmente ao avô, mas guardou uma respeitosa distância.
O garotinho estava em transe. Seu rosto alternava alegria e lágrimas, seus lábios tremiam e seu corpinho se mantinha totalmente imóvel. Dizer que ele estava arrebatado é pouco. Acho que Gregório não via propriamente Papai Noel, mas o milagre da sua aparição; o Sagrado. Durante minutos, maravilhamento e temor se confundiam em Gregório.
Por muito tempo, a imagem daquela cena não me saiu da cabeça. Embora eu não achasse que as lagrimas de Gregório fossem de simples nervosismo, ficava me perguntando sobre a sua causa.
No nosso entendimento limitado e no condicionamento filosófico e religioso que define o sagrado como o bem supremo ou a divindade como o amor infinito, esquecemos que o divino também é terrível. Fica fácil não acreditar no Deus que conceitualizamos, que é, portanto, racional, por isso “compreensível” e não contraditório; não acreditar no que esta além da própria ética e do nosso limitado entendimento preso nas palavras.
Jung diz que Cristo nos ensina que Deus é amor, mas que o amor também é terrível. Segundo ele, Cristo sabia disso, e por isso diz na tradução de sua oração para o inglês, “Lead us not into temptation” (Não nos leve `a tentação, ao invés de não nos deixeis cair em tentação).
Rudolf Otto, em seu livro “The idea of the Holy”, chama a presença sagrada de Mysterium Tremendum et Fascinans”, quer dizer, mistério de uma força avassaladora que assusta a criatura ao mesmo tempo em que a atrai. Não é atoa que a palavra “awe” do inglês, que é resposta `a divindade, pode ser traduzida para “admiração”, “reverencia”, “terror”, “respeito”, “medo”, “maravilhamento” e “espanto”.
Assim como Kant, Otto chama o sagrado, ou a própria essência religiosa, de “Noumenon” (do latim numen) e o considera absolutamente não-racional e inacessível a qualquer tratamento filosófico e conceitualização religiosa. Embora ele aceite o lado racional (ou conceitual) da religião positivamente, como ajuda a evocar essa essência, diz que a presença divina é absoluta alteridade e inacessível majestade. Nos lembra também que a própria palavra “majestade” tem conotações de inacessibilidade.
Diante da presença de Deus, a criatura se sente nula e frequentemente não consegue suportá-la. Citando diversas experiencias religiosas não- racionais desde o homem primitivo, Otto considera também as do Budismo (Nirvana) e a que expressa o Bhagavad Gita entre Krishna, encarnação mortal do deus Vishnu, e o príncipe guerreiro Arjuna. Quando Krishna atende o pedido de Arjuna para lhe aparecer em sua forma divina, Arjuna não consegue aguentar a visão e pede que Vishnu volte à sua forma de Krishna.
Falando dessa experiencia no velho testamento, Otto cita passagens do profeta Isaias, Ezequiel e até mesmo Moisés, que também cobriu o rosto por não aguentar a visão da divindade. Quanto `a ira de Yahweh e o que aparece como suas manifestações de vingança, ele diz que, novamente, esses conceitos são apenas analogias e que a ira divina nada tem a ver com o que podemos entender ou sentir como ira. Depois, segue para a experiencia religiosa no novo testamento e para a expressão do Noumenon através da música, citando composições religiosas de Bach e Mendelssohn.
Ainda assim, diz que o silencio é superior a qualquer som diante de Deus, e por isso, na missa católica, a música cessa durante o momento eucarístico da transubstanciação. Diz também o que eu vinha imaginando: É sob a entrega ao Mysterium Tremendum que se deve ver a agonia de Cristo ao derramar grossas gotas de suor que caem no chão como gotas de sangue em Gethsemane na véspera de seu aprisionamento. Pois a causa do espanto dolorido, da alma abalada até as profundezas, em um homem que já havia previsto a sua execução semanas antes e a tinha celebrado com intenção clara e com seus discípulos na Última Ceia, não poderia ser o medo comum da morte.
Otto cita o sublime e a beleza como analogias do Noumenon. Por isso devo ter sentido santidade na beleza do mar em fúria que contemplei da altura da estrada que vem de Big Sur para o Sul da California. Na beira do despenhadeiro entre essa estrada e o mar, havia uma espécie de trono bastante rústico, feito de dois troncos grossos de árvore. Me sentei nele e só vi abaixo de meus pés um mar fatal e, portanto, final; absoluto.
Vi aquilo que atrai e repele. Como a ira de Yahweh, que Otto compara mais a um evento natural de causa incompreensível do que propriamente a uma emoção, mesmo dizendo estar ela sempre envolta no sagrado e no mistério. Isso me evocou aquela beleza apocalíptica. Passei longos momentos entre a atração e a aversão pela branquidão da espuma furiosa das ondas se alternando lá embaixo com a força tremenda do movimento do verde na direção do despenhadeiro.
Para Otto, a presença do “Noumenon” pode ser evocada como a experiência simultânea de um misterioso terror e maravilhamento. Mas embora essa experiencia envolva a consciência, ela é inefável e não pode ser explicada ou conceitualizada. Tudo que se diz dela, como o sentimento que provoca de estranheza, espanto, reverencia, a sensação de impotência ou de absoluta nulidade da parte da criatura diante do Tremendum, ao mesmo tempo que a exaltação e o êxtase, são analogias entre os sentimentos “naturais” que podemos ter e os “sobrenaturais” da consciência religiosa nessa experiencia. Otto explica que esses sentimentos naturais, assim como os atributos que damos `a divindade, não passam de “ideogramas”, insinuando significados que escapam definições.
A presença avassaladora do “Noumenon” é tão inacessível quanto incompreensível. Como experiencia de uma total alteridade, sentir o sagrado repele, ao mesmo tempo que fascina e atrai. Acho que Gregório teve essa experiencia. Foi lindo. Nunca vou esquecer a imagem do seu rostinho trêmulo, lacrimejante e maravilhado.
O Valor Invisível da Música
Por trás de cada canção existe uma rede de profissionais. Muitos não aparecem no palco, mas são essenciais para que a arte chegue até nós. A Cedro Rosa Digital organiza esses direitos e dá voz a quem antes era invisível.


















Comentários