SUPERPOSIÇÃO
- Leo Viana

- 12 de out.
- 4 min de leitura

Tudo tinha dado muito mais errado do que o combinado: o cara era insuportável, o bar era barulhento, a comida era ruim, o bairro era distante e, para fechar o caixão, a sandália cara, lembrança resiliente e solitária da única viagem à Europa, arrebentou.
O relacionamento anterior não deixava saudades e o trabalho já tinha entrado naquela fase em que cada manhã era de mais sofrimento do que de expectativa. Logo ela, que sempre se entusiasmava quando tinha uma tarefa a cumprir.
Não sabia se acreditava na vidente, que previu turbulências passageiras, ou na intuição, que sinalizava uma piora sistemática da situação. A agência em que trabalhava tinha acabado de fechar importantes contratos na Argentina, em Israel e nos Estados Unidos, todos eles sob sua gerência e subitamente cancelados em função das conjunturas locais dos mercados.
Via o dinheiro corajosamente economizado ser utilizado aos poucos, sem perspectiva de novos ingressos importantes, e o projeto de aposentadoria precoce sucumbir sob os escombros. Inferno astral, no caso, talvez soasse como um eufemismo quase juvenil. Era muita desgraça junta e de repente, sem sinais, sem preliminares. Talvez o relacionamento anterior, o que não deixou saudades, pudesse ser entendido como um sinal. Ou não? Ele, o parceiro, parecia tão bom que às vezes ela mesma duvidava de tamanha felicidade. Mas, de dentro, a sensação era a melhor possível.
A operação da Polícia Federal que fez com que ele aparecesse algemado no jornal da manhã, na casa da outra família, envolvido num escândalo de contrabando de armas e ligado a políticos de extrema-direita, após ter saído de casa na véspera dizendo que iria a São Paulo visitar uma tia doente, foi um baque tão violento que ela custou a recuperar a confiança em si mesma. Mas voltou com tudo! E a sequência de infelicidades, agora sim, parecia apenas corresponder aos capítulos seguintes de um drama iniciado naquele flagrante.
Mas, e se juntasse a grana que tinha, largasse o trabalho e partisse numa aventura de volta ao mundo ou coisa parecida? E se abrisse uma escola de gerenciamento de projetos, com base nos anos de experiência em empreiteiras de atuação internacional? E se comprasse um apartamento confortável e saísse daquela ratoeira/estúdio em que vivia e só usava para dormir e – até bem pouco – para namorar? Poderia mesmo comprar um barco e passar a morar numa marina. O dinheiro até dava, ainda, desde que trabalhasse feito uma louca dali para a frente, o que entrava em rota de colisão com a possibilidade de aproveitar bem qualquer uma das alternativas. Alguns amigos, mais alternativos e desde a primeira hora desconfiados do ex-namorado agora preso, já tinham proposto a ela outras alternativas, como comprar um sítio, produzir sua própria comida e eventualmente virar empresária de turismo rural, como alguns deles fizeram.
Era essa, depois das desgraças, a grande ocupação de sua cabeça naquele momento da vida. O que fazer do futuro, do tempo, da vida?
Como sair dessa encruzilhada, desse labirinto em que ela tinha entrado a contragosto, mas que agora a consumia diuturnamente, como um teorema matemático insolúvel, como uma sala escura com fantasmas, animais pegajosos, e paredes eletrificadas? Será exagero dela pensar assim? Nunca antes sofrera tanto. Será a dificuldade de lidar com a primeira vez?
— Não consigo mais!! Travei!!
Olga, escritora renomada, dois Jabutis na estante da sala, livros traduzidos em 10 idiomas e dezenas de países, conferências pelo mundo todo, estava diante de um impasse. Seus livros tinham uma pegada mágica, um toque de realismo fantástico que solucionaria rapidamente impasses como o da protagonista, fazendo com que ela voltasse no tempo ou trocasse de corpo ou dimensão no momento em que a situação fugisse do controle.
Mas tinha decidido resolver as coisas de modo racional, na tentativa de não criar uma legião de seguidores do impossível. Ao menos era o que ela alegava. Dizia-se, nos bastidores, que ela queria mesmo era conquistar ainda mais leitores e fazer transbordar o cofrinho, já incrivelmente cheio.
Deu entrevistas dizendo que seu novo romance trataria de gente comum e de situações cotidianas.
Agora travava diante de um impasse de sua protagonista, ainda inominada, nos parágrafos iniciais do romance.
Não desconfiou quando o marido saiu. Ele sempre saía no mesmo horário. Não desconfiou quando ele não voltou. Ele às vezes não voltava. Quando ligou a TV na hora do café da manhã e viu o marido preso por contrabando de armas, na casa de outra família, desistiu da vida cotidiana na literatura.
Heróis, dragões e situações de realismo fantástico são de solução menos complicada.
Para escrever em paz, agora não sabe se compra um sítio, faz uma viagem, abre uma escola, compra um apartamento gigante ou um barco.
Enquanto o dinheiro dá.
Rio de Janeiro, outubro de 2025
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